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O último show do Gil e a singularidade da criação pessoal


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Há alguns meses eu decidi que queria ver um show da Tempo Rei, a turnê de fechamento da carreira do Gilberto Gil.

Eu já tinha visto um show dele anteriormente na maravilhosa Sala São Paulo (uma das casas de concerto mais legais do mundo), então estava resistindo bravamente a tentação de gastar uma pequena fortuna com os ingressos, até que eu cometi o erro de olhar a setlist do show.

Por ser a última turnê a setlist tinha as músicas mais icônicas do Gil e meu coração não aguentou, comprei dois ingressos pro segundo dia no Rio de Janeiro, que seria dali a 4 meses.


Os materiais de divulgação também estavam uma belezura <3 fonte
Os materiais de divulgação também estavam uma belezura <3 fonte

Sinceramente eu quase me arrependi dessa decisão.

Preciso lembrar que nós estamos mochilando, o que significa que prever nossa localização em momentos futuros nem sempre é tarefa fácil. Ir nesse show significou um pesadelo logístico que incluiu um translado de Arraial do Cabo, um adiamento de reunião no trabalho, uma hospedagem de fim de semana no Rio de Janeiro com os nossos 30kg de bagagem e atravessar a cidade de ônibus a 1h da manhã.

Ainda assim, tudo valeu totalmente a pena. Essa foi uma das experiências mais emocionantes que já tive.

Eu já fui em uma quantidade razoável de shows (principalmente quando pagava meia, saudades). E é claro que eu sei que por mais que aquele momento seja especial e único pra nós, o artista no palco está trabalhando. Ele vai se empenhar pra entregar algo legal, mas aquilo é um cotidiano na vida dele, mais um de uma série de apresentações.

Porém, o que eu senti nesse show foi algo muito diferente.

Por si só a passagem da turnê pelo Rio era muito relevante, Gil viveu e fez grande parte de sua carreira na cidade, então seu último show ali seria um momento único, uma viagem por tudo que foi sua história e sua música.

Depois de duas horas de uma apresentação com uma energia surreal pra um senhor de 80 anos, Gil chama o convidado da noite Jorge Bem Jor. Pela primeira vez em 30 anos os dois (amigos de longa data) se encontravam no palco, uma última vez. Naquele momento todo o estádio lotado desapareceu, foi como se nós fossemos meros observadores de um momento íntimo entre dois velhos parceiros.


Coisa linda eles dois fonte
Coisa linda eles dois fonte

Muito além um espetáculo, o que eu vi nesse show foi o resultado de uma vida inteira sendo mostrado através da arte de uma pessoa.  

Acredito que muito dessa sensação esteja relacionado a natureza da música de Gilberto Gil, como ele mesmo menciona, a música pra ele é mais do que um trabalho é uma forma de ver o mundo. Cada composição dialoga com uma parte de sua vida.

A revolução da juventude tropicalista.

O medo da ditadura.

A conexão com a natureza.

Sua descoberta da África e da diáspora.

A relação com sua ex-esposa e com a família.

Gil compõe o que ele vê e sente, além obviedades, além expectativas e clichês. Sua música é um espelho de seu relacionamento com o mundo e é isso que a torna tão única.

Talvez eu não fale tanto aqui de música, mas eu sou aficionada por MPB das antigas. Costumo dizer que meu conhecimento de música moderna termina junto com a MTV, porém, eu não sou do tipo que diz que “música atual é horrível” nem que “antigamente era melhor”. É verdade que sempre tive um fraco por velharias, mas eu tento renovar meus gostos com alguma frequência, ao menos ouvir o que anda surgindo.

Nessas buscas eu tenho uma constante sensação de que falta algo na grande maioria do que escuto atualmente. É claro que um pouco disso é o preconceito do meu ouvido acostumado ao que é confortável e afetivo, mas pensando além sinto que grande parte dos artistas produz mais a partir de expectativas do que de sua visão de mundo pessoal.

Aqui eu não estou falando de música pop, comercial, nem nada disso. Falo pensando justamente na música independente, aquela feita por pessoas pela necessidade de alto expressão, sem tanto pensamento comercial. Mesmo nessa área eu tenho sentido uma homogeneização na temática do que é produzido.

Falando especificamente sobre MPB e samba (gêneros que escuto com mais frequência) a última playlist que ouvi de “novas vozes” do Spotify era extremamente previsível e bastante monotemática. Cerca de 80℅ das músicas falavam sobre amor e o mar da Bahia por alguma razão, além os ritmos serem tão semelhantes entre si que mal se percebia a mudança de faixa.

É claro que amor é um sentimento onipresente e o mar baiano é magnífico, mas cantar de forma tão previsível sobre coisas tão cotidianas é como pintar um pôr do sol ou um vaso de rosas: É bonito, vendaval e todo mundo gosta, certamente vai servir pra decorar a parede da casa de várias senhorinhas, mas (ao menos em casos excepcionais) está longe de ser marcante.

Eu costumo dizer (talvez sendo um tanto ranzinza, admito) que tudo que havia para ser dito sobre amor e o mar já foi falado por Djavan e Dorival Caymmi. A impressão que fica é que grande parte dessa geração produz mais com base em modas e expectativas e menos com sua própria visão de mundo. Mesmo se tratando de música independente, onde teoricamente o único objetivo é criar algo que seja válido pra você.

É óbvio que isso não é uma generalização, consigo pensar em artistas incríveis que saem totalmente disso.

Casas do Rubel é uma das coisas mais lindas que já ouvi e fala sobre infância, crescimento, nostalgia e fé.

Iboru é uma homenagem única do Marcelo D2 ao samba tradicional e a tudo aquilo que o samba significa pra ele.

Amarelo do Emicida fala ao mesmo tempo de periferia, amor, revolta, injustiça e amizade.

Esse show do Gil me fez justamente pensar sobre artistas que imagino ver daqui 40 anos em um show que evoque tanta sensibilidade, poesia e humanidade.

Penso que o que torna o trabalho de Gil tão memorável (além seu talento inegável é claro) é a capacidade de transmitir sua visão de mundo através da arte de forma tão pessoal, tornando-a algo que ele e somente ele poderia conceber.

Os próprios Beatles jamais teriam sido o que se tornaram se tivessem cantado apenas músicas românticas alegres. Eles viraram um símbolo de revolução quando começaram a buscar novas reverências e a cantar sobre sentimentos mais complexos e indecifráveis, muitas vezes sem nome.

Falando não apenas sobre música (que aliás, eu não entendo nada, é por isso que o blog que se chama Groselhas) mas sobre criação no geral. Nós começamos a criar a partir de referências, nosso desenho favorito, a fanart de um filme, copiando um artista que admiramos.

É provável que no futuro, conforme treinamos, melhoramos e entendemos nosso próprio processo, é possível chegar em um lugar único com nosso trabalho. Um resultado que vai ser, além qualquer classificação de valor, algo singular e totalmente atrelado àquilo que somos e como compreendemos nossa realidade.

A beleza mora justamente no poder de construir algo que só é possível graças a sua vivência, algo infinitamente único e individual. É claro que o lugar comum tem seu espaço, mas eu realmente acredito que aquilo que se torna memorável precisa ir além das águas calmas, rumo a lugares mais fundos e tempestuosos.

Chegar, como Gil, à velhice e ter criado uma arte que fale tão profundamente sobre você e da sua forma de ver o mundo (isso tendo ou não te feito famoso) é uma das coisas mais transcendentais que consigo imaginar e certamente um jeito fascinante de passar pela vida, abraçando o tempo que é sim o rei.  

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